
Chiko, na festa de 30 anos da Benevides Paixão. Foto de Rogério Amendola

Convite de formatura

Parte da turma, em intervalo de aula
Jornalistas são treinados a dar notícias. Faz parte do ofício – não importa a hora, o meio, o teor. Trabalham com palavras precisas, correm contra o tempo, ficam em cima dos fatos, fiscalizam e defendem o bem público, mas nem sempre divulgam as melhores informações. Ainda que acostumados a essa rotina, há notícias que os impactam. Reverberam por dias, desconcertam.
No último dia 24 de outubro, pela manhã, antes dos jornais e portais de Santa Catarina anunciarem as manchetes do dia, frases que ninguém esperava ecoaram entre os jornalistas egressos do Curso de Jornalismo da UFSC. “A notícia que eu jamais queria contar: meu melhor amigo, Chiko Kuneski, faleceu hoje de manhã”, escreveu nas redes sociais e em grupo de mensagens o jornalista Paulinho Scarduelli, deixando sem ação seus colegas benevidenses.
Benevides Paixão é o nome da turma de formandos de 1985, da qual Francisco Carlos Kuneski, o Chiko, fez parte. Foi inspirado no personagem-jornalista do cartunista Angeli, quem, nos anos 1980 e 1990, fez a cabeça da moçada com suas tirinhas irônicas, roqueiras, undergrounds – Rê Bordosa, Wood&Stock, Bob Cuspe, Meia Oito, os Skrotinhos que o digam. A referência proposital à HQ transgressora carregava uma identificação comum àquela geração de contestadores. Tanto que a Benevides Paixão não vestiu a tradicional beca escura na formatura, mas foram todos de branco: “para sermos mais claros!”, provocou então o colega orador para uma grande plateia, um texto de criação coletiva com toques certeiros do Chiko.
E Chiko era certeiro com as palavras. Com elas conviveu a maior parte da vida – desde as notícias da prática profissional, passando por tiradas provocativas nas redes sociais e ao vivo (estas regadas a muitos risos e goles com os amigos benevidenses da vida inteira, Mauro Pandolfi, Sandro Shiguefuzi, Zeca Virtuoso e Paulinho Scarduelli), até as crônicas e os poemas musicados por Luíz Aurélio Baptista e outros reunidos em seus três livros – D’Vagar si não aleija (2001), Diário do nada. Cem dias sem mundo (2020) e Choro dionisíaco (2022).
No exercício do jornalismo, que foca o interesse público e exige textos precisos, sem duplo sentido, onde a palavra fica restrita ao referencial que nomeia – algo essencial para a rápida compreensão do leitor –, Chiko se manteve atuante, trabalhando como assessor de imprensa da Prefeitura de Florianópolis, entre 1986 e 2013. Contemporâneos da imprensa local que a ele recorriam em busca de informações elogiam até hoje seu profissionalismo: ele sabia que jornalistas têm pressa ao fiscalizar os poderes públicos, sabia que na outra ponta está a sociedade esperando por respostas.
A convicção de Chiko de que a prática jornalística é ferramenta de luta para a construção de uma sociedade mais cidadã já estava presente em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), intitulado “Implantação de Equilíbrio: órgão informativo da Associação Florianopolitana de Deficientes Físicos (Aflodef)”. Lá ele escreveu: “Sou deficiente físico. Há muitos de nós pelo estado e pelo país. Pensando nisso e aliando esse fato à profissão que estou assumindo, resolvi implantar um jornal para os Deficientes Físicos de Santa Catarina. Será um jornal para tratar de nossos problemas, para unir os deficientes, para sensibilizar a comunidade”. Sobre o título escolhido para o boletim, usando da racionalidade que prezava, explicou: “Equilíbrio representa sobriedade, razão. A mesma sobriedade e racionalidade que deve dirigir a luta dos deficientes”.
A luta cidadã de que Chiko foi protagonista em Florianópolis e em Santa Catarina, com os anos se fortaleceu e se espalhou pela sociedade brasileira. Hoje, a palavra “deficiente” deu lugar à expressão “pessoa com deficiência”, expondo a consciência de que palavras carregam valores, e mesmo que haja muito a conquistar, o Brasil tem a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que criou o chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência, assegurando-lhes e promovendo direitos e condições de igualdade.
Mas nem só da precisão jornalística quis viver o Chiko. Tão logo se aposentou, sua relação com as palavras foi ganhando asas e passou a flertar com os múltiplos sentidos textuais, de olho nas entrelinhas e em diferentes acepções que também traduzem e escrevem o real.
Primeiro aconteceu com suas crônicas, na parceria com o jornalista Pandolfi, no blog Crônicas por tubo (cronicasportubo.blogspot.com), que se centrou sobre o universo do futebol. Chiko foi torcedor apaixonado do Flamengo e nem sempre politicamente correto em suas crônicas, como reconheceu. Em “O Tango e o Cancan”, sobre a final da Copa de 2022, que deu à Argentina o tricampeonato mundial frente à França, lançou mão da analogia entre as danças típicas de cada país para ressaltar que, mesmo com a vitória, o tango deu lugar à arrastada milonga em pleno “tablado de grama e paixão”: seus textos foram, assim, vestindo-se de metáforas, alegorias e outras figuras de linguagem, também de gírias, oralidade, opinião e muitas lembranças.
O passo decisivo de Chiko rumo à plurissignificação das palavras veio, afinal, com sua descoberta da poesia. Em versos livres, sem a formalidade da prosa, brincando com a espacialidade das estrofes, sem se ater a métricas e rimas, seus poemas, revestidos de vazios provocadores, preencheram os leitores de uma revoltada e dolorida percepção, em especial sobre os dias da pandemia, em que, enclausurados, vimos a vida passar ao longe – ainda que, paradoxalmente, houvesse muita vida próxima. Em Diário do nada, resume bem essa sensação seu Haikai Confinado: “Nesses dias de não e não…/O que me deixa em pânico/ É perder a conexão”.
A voz poética de seus últimos poemas não se tornou menos consciente sobre a finitude dos homens, sobre a própria finitude. Há exato um ano de sua partida, nas redes sociais, o poema Antepasto já antecipava o retrato do homem frente a seus mais profundos conflitos. “Vou jantar a comida fria/ Eu e meu vinho/ Como a jantar-me/ Autofágico, sozinho/ […]/ Nesse fim de mim mesmo/ Deitado e sentado à mesa/ Devorar-me ao fim/ Sem sobremesa”.
Chiko, o jornalista-poeta, revelou uma dicção que não é alheia ao que o presente é capaz de produzir nos diferentes corações. Ainda que usando palavras com múltiplas interpretações, ainda que diferentemente dos textos jornalísticos, fez o registro de seu tempo – e os efeitos desse tempo sobre os homens. Um tipo especial de jornalismo. Na partida precoce de outro jornalista egresso do curso, o cartunista Frank Maia, em 05 de junho de 2022, traduziu esse sentimento com o vazio de um domingo triste e úmido: “[..]/ Como as gotas chuvosas/Chorando às janelas/ Olhando-me olhar/ O cinza sem matiz/ Nesse mero vagar/ Sobrevivendo na poesia/ Ouvindo Chico/ Lendo Chiko/ Afogando em conhaque/ Esse infinito domingo”.
Hoje estamos nos despedindo das provocações de Chiko Kuneski. Não sem importantes desconcertos. Desde que ele partiu, alternam-se e se mesclam em nós o susto, o entorpecimento, as saudades, o sentimento do vivido e a dura consciência da iminência daquela “marca do nosso estranho destino sobre a terra, [d]aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo”, como diria o escritor Ariano Suassuna. Ou de sabermos estar, afinal, “ampulhetando o fim”, como Chiko escreveu em Vida Gotejada.
Ao longo dos últimos dias, a dura e inesperada notícia de sua partida, aos 60 anos, deixando a companheira Maria Luiza Cascaes, familiares e muitos amigos, foi ganhando outros contornos e novos sentidos – e assim (e aqui) se fez crônica. Chiko entenderia.
Texto: Valentina da Silva Nunes, da turma Benevides Paixão